Nossa vida é feita de escolhas. Até na hora de sermos concebidos, é uma escolha que foi feita antes, lá atrás, que resultou no nosso nascimento. Um caminho traçado ou não, muitas vezes sem planejamento, surge uma vontade e as ferramentas à mão. Assim, atualmente, têm surgido muitas novas vidas por aí.
Todos têm caminhos que os trouxeram até aqui, temos inspirações, ajudas e até placas que nos indicam que caminho seguir, mas no final você andou até aqui com suas próprias pernas, escolheu você mesmo os caminhos que o trouxe. Todos nos no final, esperamos encontrar a felicidade. Apesar de alguns acharem que nossa vida é pré-definida, que temos um destino já traçado da hora que nascemos e não fazemos mais do que segui-lo.
Que coisa mais tola, em minha opinião. Eu jamais conseguiria viver sabendo que minha vida toda está traçada do momento que fui feita. Jamais. Não teria livre arbítrio, nem ao menos para buscar a minha felicidade.
Aliás, coisa esta que muito me intriga. Por que encontrar a felicidade no final da vida? Por que nosso objetivo é encontrar a paz de espírito? Quer dizer que depois disso você pode morrer? Que depois disso, você não precisa mais viver, por que sua vida já atingiu seu objetivo?
Eu, particularmente, desejo encontrar a minha felicidade durante a vida. No meio dela, em um ponto que esteja perto do começo e longe do fim, no meio o bastante para que eu possa vivê-la em toda plenitude possível. E acredito que não há destino, estamos todos aqui para trilhar nosso destino, nossa história, nós mesmos com nossas pernas.
A história que vou contar hoje será muito rápida. O leitor que quiser mais ficarei devendo, e isso me traz uma mistura de felicidade com tristeza. Felicidade, pois este leitor terá gostado de minha história, e tristeza que talvez nunca veja o término dela.
Essa história tem tudo para dar certo, já que de que a pessoa que eu escrevo e alguém que merece atenção especial. Ela não veio de nenhum lugar que tenha destaque, não é nenhuma celebre personalidade. Ela é apenas uma menina que nem ao menos nasceu, mas sua marca já está registrada.
Agora, alguns estarão pensando quem é esse ser tão especial que mereça atenção tão especial se nem ao menos nasceu. Caro leitor, entenda, há pessoas que são necessárias ao mundo e que sua vida é totalmente ligada a fatos e atos que mudaram a história de algum lugar, de pessoas em geral.
Pois essa é a arte de viver: alterar tudo que está no caminho que passamos. E a arte só é apreciada quando essas alterações são boas. Se você viveu e não alterou nada, não deixou sua marca, não adiantou ter vivido. Ninguém se lembrara do que você tinha quando se for, mas sim do que você fez, de quem você foi.
Agora sim eu já vejo os garfos e as tochas. Caro leitor, não fique possesso! Eu não estou criticando sua maneira de viver ou de ver a vida, apenas aponto meu modo. Abaixe suas tochas: apesar do ser humano ser algo que já vem com pré-conceitos instalados na sua máquina, sei que você tem um programa contra esse tipo de vírus.
Olha, aqui estou eu a dar voltas sem chegar ao lugar final. Pois bem, essa menina que conto sua história, sua alvorada, é um ser especial. Ela teve seus caminhos escolhidos com maestria, ela errou alguns, mas seguiu sempre em frente. Sim senhor, ela fez sua sorte sozinha, sem precisar acreditar em deuses ou destino para conseguir vencer na vida. Ela não sentou e espero que o destino – seja lá qual seria o seu – tomasse conta da sua existência. Ela levantou-se e foi à luta.
Ela é alguém para se apreciar, diferente dessa humilde escritora que vos relata esse fato. Ora, pois, antes que eu recomece as lamúrias de minha ínfima existência, vamos à vida dessa jovem menina, dessa honrada e modesta criança chamada Haia.
A noite era amena em Chechelnyk.
A neve dera uma trégua nas ruas, o que os moradores agradeciam àquele mês de abril por ser mais quente que os anteriores. Nas ruas, as pessoas voltavam para casa: crianças de uniforme escolar regressavam das classes, adultos com uniformes de trabalho deixavam mais um dia cansados, alguns com o sentimento de dever cumprido, outros nem tanto. Alguns com o semblante desanimado e torcendo apenas para a morte vir lhe fazer companhia. No meio destes rostos, um homem estava feliz, tão feliz que poderia ser até indecente alguém sorrir daquela forma em plena segunda-feira. Seus cabelos castanhos balançavam preguiçosamente no ar frio parado daquela noite, seus olhos verdes brilhavam de contentamento enquanto corria para casa.
Finalmente havia conseguindo a passagem para as Américas, enfim poderiam ir embora da Chechelnyk, da Ucrânia e começar uma nova vida. Pulando um degrau na calçada e abrindo o portão da casa, o “nosso” homem correu, sorrindo para a filha que brincava com a neve no quintal, parando por um momento para fazer festa com a menina de cabelos louro escuros que sorriu com delicadeza para o pai, segurando a barra de sua blusa antes de ele se livrar dela e entrar em casa.
Uma mulher, da cozinha, observava a movimentação dos jardins pela minúscula janela encardida, a única do cômodo abafado e quente, o mais quente da casa. Mexia na barriga um pouco nervosa: duas horas na fila do Hospital para o médico lhe falar que estava grávida, e isso não era lá muito bom. Não com o marido tentando conseguir as passagens para as Américas e com a filha mais nova ainda pequena. Aliás, pensava em não ter mais filhos, não depois de Leia e Tania. Suspirando devagar, Mania passou a mão nos cabelos louros mau-cuidados e tomou um susto ao ouvir alguma coisa cair no andar de cima. Devagar, devido ao cansaço, subiu as escadas para ver o que havia acontecido.
No quarto das duas filhas, viu que uma lamparina havia caído da escrivaninha, levando bonecas junto. As cortinas balançavam com o vento gelado que preenchia o quarto. Mania recolheu os objetos e fechou a janela, com muito cuidado, pois havia quebrado um pedaço da lamparina e esses pequenos pedacinhos – de vidro - estavam espalhados pelo chão. Pegando o pano que usava para limpar a mesa da cozinha, começou a catar com o máximo de cuidado possível, porém um grito masculino fez Mania descuidar dos dedos e feri-los no vidro. Levou o mesmo na boca enquanto ia até a escada da casa.
Pinkouss por pouco não jogou a esposa no chão quando subiu os degraus da casa de dois em dois. Queria muito vê-lá, queria contar para ela tudo que havia acontecido, todas as boas notícias, e quase a jogou escada abaixo devido a força que seus corpos bateram.
Mania passou a mão na testa, fazendo um rastro de sangue manchar seus cabelos enquanto Pinkouss a ajudou a descer. O marido deu um segundo grito ao ver a mão ensangüentada da esposa, que meramente acenou, pedindo que a ajudasse a ir para a cozinha, precisava lavar a mão e sentia-se um pouco enjoada. Tania e Leia vieram correndo ao ouvirem os gritos da mãe e do pai e ficaram rodeando os pais, ávidas por noticias e novidades, que o pai a custo não soltava. Um olhar reprovador de Mania bastou para Pinkouss desistir de falar na frente das meninas, enquanto a mãe servia a janta com a mão boa. O marido tamborilava os dedos na mesa, entretendo as duas filhas com uma história qualquer. A mãe sentiu um aperto no coração ao servir a sopa para as meninas: a comida estava acabando e o inverno ia entrar muito em breve, o que significava que precisavam encher a despensa e Pinkouss não tinha emprego e ela mal conseguia pagar as contas com o que ganhava lavando roupa para fora e agora mais essa: grávida! Ainda não sabia como contar para a família essa novidade. Suspirando, terminou de servir o jantar e sentou-se na mesa apenas para remexer na comida. Tania e Leia não repararam na mudança de humor da mãe, estavam entretidas demais com as brincadeiras do pai. Já Pinkouss reparou no humor da esposa, porém sabia de seu jeito discreto, não comentou nada na frente das filhas. Deixou para depois do jantar, mantendo a felicidade que sentia no topo de suas ações.
Nesse momento o leitor vai começar a pensar que eu estou enrolando demais, por que não conto logo o final dessa história? Por que não conto logo que a menina que esta ali, dentro da barriga daquela mãe aflita. Mas entenda-me: e necessário saber o que aconteceu no seio dessa família, pois quando eu lhe disser quem e essa menina, você vai entender o motivo de tantos detalhes, detalhes que antes não sabia que existiam.
A paciência é uma virtude, digníssimo leitor, eu sei que trazê-lo até aqui é forçar por demais a sua, depois de tanto cansá-lo com a minha existência simplória e relevante, porém é necessário.
E antes que ascendam as tochas e pense em largar esse texto, voltemos a nossa história.
Mania desceu devagar as escadas e sentou-se na poltrona da sala. Estava exausta. Depois de colocar as duas meninas na cama, lavar a louça do jantar e uma pilha de roupas, tomar um banho e cuidar para deixar o café da manhã pré-preparado, deixou que o conforto da poltrona penetrasse por seus músculos tensos, seus ossos cansados e sua pele maltratada pelo sol frio e vento cortante de Chechelnyk. Fechando os olhos para apreciar melhor o silêncio da sala escura, tomou um grande susto ao ouvir a voz do marido tão perto e tão alta
- Mania! Tenho uma ótima novidade!
A mulher, depois de quase cair da cadeira, esfregou o rosto e encarou o marido na penumbra da sala. O sorriso no rosto dele a fez sentir uma onda de tristeza e culpa ao lembrar o que precisava falar com ele.
- Eu tenho uma novidade também, Pinkouss, mas não tenha certeza que seja ótima.
- Com certeza não é tão ótima quanto a minha!
Pinkouss sorriu enquanto acenava como se espantasse um mosquito chato. Com certeza Mania falaria da falta de serviço, ou da despensa vazia ou ainda sobre os cobertores e roupas que precisavam comprar para o inverno que chegava. Mas nada disso importava nada disso era mais problema: eles partiriam em, no máximo, seis meses para as Américas, teriam uma nova vida, uma nova oportunidade.
- Conte a sua novidade então, querido.
- Consegui! Vamos para a Alemanha e depois para a América! Estou pensando ainda entre Maceió ou Rio de Janeiro. Sei que sua irmã mora em Maceió, mas eu sempre ouvi dizer que o Rio de Janeiro é um lugar com melhores oportunidades para... Mania, o que houve? Por que esta chorando?
Mania não havia conseguido segurar as lágrimas que agora caiam fartas por seu rosto. Oh céus, por que isso acontecia logo agora? Logo agora que tinha conseguido as tão sonhadas passagens, esta gravidez? Limpou o rosto com a barra do avental enquanto respondia
- Oh, Pinkouss você terá que ir sozinho. Não poderei ir agora.
- Por que? O que houve Mania? Ora, vamos! La terá escolas para as meninas, teremos tudo! O que aconteceu? – perguntou ele preocupado ao ver a mulher balançar negativamente a cabeça
- Por que estou grávida! Estou grávida de dois meses!
Pinkouss calou-se por um momento, mordendo o lábio inferior. Sim, era um problema. Logo agora? Olhando para a barriga da mulher, sentiu uma onda de raiva passar por seu corpo: por que? Por que logo agora?
- Tem certeza?
- Sim, tenho certeza. O médico confirmou hoje de manhã. Minhas regras já estavam atrasadas há algum tempo, mas eu não tive confirmação, até hoje.
- Mania, já pensou em tirar?
O rosto de Mania empalideceu. Tirar? Por que faria isso? Não podia fazer isso! Olhando para o marido, horrorizada, disse num fio de voz:
- Tirar? Você quer dizer... Pinkouss, não! Aquilo é horrível! Muitas mulheres morrem, sem falar nas crianças, mortas de qualquer jeito! E não... podemos... é nossa... essa criança é nossa filha! Como teria coragem de matar seu próprio filho?
- Mania, vamos! Estamos esperando essas passagens há dois anos, e agora que conseguimos, você não vai? Podemos ter outros filhos, mas...
- Não, não vou tirar. Vá sozinho, fico aqui com Tania e Leia e o bebê. Pode ir.
Pinkouss olhou para ela em silêncio. A voz da esposa dizia que não precisava discutir, pois não iria adiantar: ela não permitiria que tirassem o bebê, ela ficaria sozinha nessa casa velha sofrendo os males do inverno com duas – e agora – três crianças pequenas.
Mania observou o marido levantar e andar pela sala, passando a mão nos cabelos, um típico sinal que ele estava nervoso. Permaneceu calada, passando a mão na barriga. Nem dava para sentir ainda algo que indicasse uma gravidez, mas sabia que ela estava ali: o doutor nunca errava. Prendeu a respiração ao ver Pinkouss voltar e colocar a mão na barriga da esposa
- José disse que é bom pensarmos em um nome para as meninas e para nós dois para usarmos no Brasil. Nossos nomes chamam muita atenção por serem em outra língua. Eu pensei em Pedro para mim, o que você acha? Pensei em Maria para você e Catarina para Leia.
Mania havia encolhido seu corpo para proteger a barriga, caso o marido quisesse tentar ele mesmo fazer o bebê sair à força. Mas a atitude dele a surpreendeu. Com um sorriso tímido, ela pousou sua mão em cima da do esposo
- Não gosto de Maria. É comum. E Catarina não é bonito para Leia. Que tal Marrieta para mim? E para Leia, Elisa. Lembra-me aquela música daquele músico alemão, Beethoven. É um nome musical
- Perfeito para mim. E para...
Passou devagar a mão na barriga da esposa. Que nome daria a criança? O que era, primeiro? Menino ou menina?
- Hum... se for menino, pode se chamar Pinkouss também, como você. Assim mudaríamos o nome dele para Pedro também. Zaina disse que lá é comum nomes de pais e filhos iguais.
- Adoraria ter um pequeno Pinkouss para me ajudar...
- Mas eu acho que não vai ser menino – cortou Mania pensativa – eu sinto que vem mais uma menina para fazer companhia a Tania e Leia.
- Certo, certo. O que acha de Haia?
- Haia? Que nome e esse?
- Era o nome da minha avó. Aquela que morreu de Peste. Minha mãe me disse que era próprio de pessoas perspicazes, com espírito analítico, equilibradas e confiáveis.
- Sinto que nossa pequena filha vai ser uma pessoa perspicaz e vai ser muito analítica. Sim, casa com ela sim. Eu adorei! Mas e quando formos para o Brasil?
Silêncio. Nenhum dos dois sabia que nome colocar na filha que nasceria. Nem sabiam se era uma menina. Mania levantou-se ao ouvir o barulho do relógio de carrilhão – única peça de decoração de toda a casa – e foi até a janela, remexendo em uma pilha de roupas que estavam em um sofá próximo. Ao remexer em um casaco feminino social, viu cair um papel no chão e abaixou-se para pegá-lo, lendo o que dizia:
“Do latim, Clarice é aquela que comunica, que é amiga, tem otimismo, o bom humor reina em sua vida e é despreocupada com assuntos irrelevantes”
Com um sorriso estampado no rosto, Mania virou-se para Pinkouss e disse:
- Clarice, nossa filha será Clarice.
E assim, caro leitor, a vida de Clarice Lispector começava.